Friday, 19 September 2008

O Cão



Perto da Praça de Espanha, em Lisboa, vê-se um cão, ao longe (os animais são assim, quase verticais) e só depois se vê o que está em baixo, no chão. O cão guarda algo como um bom cão de guarda. À primeira vista, em baixo dele, roupa apenas, um amontoado. Mas qual o cão que guarda tecidos? O cão guarda um homem, meu caro. Cão atencioso, gentil, olha para baixo e pergunta, naquele modo mudo animal: estás bem? Depois olha para cima e em redor: quem vem aí? Que ninguém se aproxime. O dócil cão está preparado para mostrar a maldade inteira que os amantes têm. Está tão ligado ao dono, tem tanto afecto por ele, que será capaz de exercer muita violência contra quem se aproximar. Para defender, atacará. [Por vezes, ao lado do cão, parecemos pertencer a uma espécie animal de ética mais baixa, mais mesquinha. Nesta situação, o cão é humano e mais vertical do que parece, até porque o homem quando dorme (ou está morto) abandona a pose de que nos orgulhamos.
Bem, mas não falemos do cão nem de quem dorme ou está morto – não, não estava morto, mexeu-se.]
Eis a história do mundo e também dos humanos: tudo o que amas pode ser, em parte, transferido para uma violência, para uma agressividade em relação ao resto do mundo. Amar alguém é estar preparado para odiar muitos, para os atacar, caso estes interfiram negativamente no amor em si (no processo) ou na coisa amada. O amor pois como coisa bela e alta e extraordinária, sim, mas apenas para quem é o sujeito ou o objecto do amor. O que fica de fora, de fora fica, isto é: transforma-se em potencial inimigo.
Por isso aquele cão assusta: tem humanidade a mais. Quando baixa a cabeça em direcção ao dono ama, quando a levanta está preparado para odiar.

Gonçalo M. Tavares in Visão

1 comment:

Fresquinha said...

O que prova que o amor e o ódio andam sempre juntos. Ou melhor, o ódio é a forma de perpetuar o amor. Coisas.